A saída de Alan Greenspan e seu legado
Em 31 de janeiro de 2006 chega ao fim o 5º mandato de Alan Greenspan como Chairman (presidente) do Federal Reserve após 18 anos no cargo.
Com Greenspan, o FED deixou de ser uma instituição sisuda, fechada, que surpreende e procura domar o mercado financeiro, para uma que tenta, e de fato, consegue se comunicar mais abertamente e se tornar parte do dia-a-dia do cidadão americano. Há um mês mais ou menos, Greenspan foi assistir a uma partida de baseball. Não surpreende que vários torcedores pedissem um autógrafo. Mas a melhor mostra de seu prestígio e popularidade foram os gritos de “Go Alan!” e “Alan, keep ´em low”.
Greenspan é considerado por muitos como o melhor banqueiro central de todos os tempos. Seu mandato foi caracterizado por um estilo muito peculiar, de grande flexibilidade, com centralização da política monetária em sua figura pessoal, o que torna muito difícil a reprodução de seu padrão pelo seu sucessor. Exemplo disso foi quando Greenspan se deu conta, antes de qualquer um, do boom de produtividade da segunda metade da década de 1990, evitando que a taxa de juros subisse desnecessariamente (a despeito das recomendações de outros governors do FED e das previsões dos modelos econômicos) e abortasse a maior fase de expansão econômica da história dos EUA.
Um dos grandes legados do seu mandato é a “abordagem da administração de riscos para a política monetária”, assim batizada pelo próprio Greenspan, que consiste em tomar decisões levando em conta não apenas o cenário mais provável, mas também cenários alternativos que, mesmo com baixa probabilidade de ocorrência, podem ter efeitos muito fortes sobre a economia.
Greenspan assistiu ao crash de 1987, dois meses depois de assumir seu posto no FED, quando o Dow Jones caiu 22,6% em um só dia. Em 1996 alertou para a “exuberância irracional” da bolsa de valores cuja bolha estourou em 2000. Há algumas semanas, chamou atenção para os riscos dos investidores estarem “aceitando menor compensação pelo risco” e para o fato de que “a história não tem lidado com gentileza aos períodos que se seguiram a baixos prêmios de risco”.
Greenspan reconhece que uma das prováveis razões para o apetite pelo risco dos investidores é a sensação de que a economia está mais estável e resistente a crises. Talvez a economia mundial não seja um mar tão calmo, ou mais calmo que no passado. Basta lembrar o que foram as crises financeiras dos anos 90, mesmo as provocadas pelo apetite ao risco aliado a sofisticadas técnicas de arbitragem nos EUA. Talvez a calmaria esteja na sensação de que o FED irá lidar bem com as crises, oferecendo liquidez quando for necessário, e retomando as rédeas quando a situação se normalizar. Esse trabalho de “limpeza” pós-crise se tornou uma marca registrada do FED nos ÚLTIMOS anos.
Há quem diga que depois do estouro da bolha do NASDAQ, a estratégia do FED de reduzir rapidamente a taxa de juros, e mantê-la baixa por um longo período, é uma das causas da especulação imobiliária dos EUA. Essa pode ser uma das razões, mas o fato é que o banco central americano tem um mandato legal muito claro que é estabilidade de preços e pleno emprego. E a economia respondeu bem à política de juros baixos, sem dar mostras de aceleração da inflação. (Aliás, há dois anos se falava no risco de deflação). Portanto, segundo o padrão de avaliação legal, o FED agiu de acordo com o seu mandato legal.
Desinflação e a grande moderação
O mundo alcançou uma fase de juros baixos, sem inflação. Os EUA chegaram a ter inflação de 15% a.a no final dos anos 70 e desemprego de quase 10% no início dos 80. Aí começou o longo período de “desinflação”, com a presidência de Paul Volcker, entre 1979 e 1987. As políticas de Volcker e Greenspan são vistas não apenas como responsáveis pela desinflação, mas, como CONSEQÜÊNCIA, pela menor volatilidade do crescimento e do desemprego. Longe de ser uma administração de curto prazo, para lidar com surtos de inflação ou fases de recessão, a política monetária passou a ser vista como fator de estabilização de longo prazo com repercussões sobre a própria taxa de crescimento econômico.
Os últimos vinte anos têm sido chamados de período da “grande moderação”, quando as taxas de inflação, desemprego e crescimento se mostraram menos voláteis. E parte da explicação estaria na crescente credibilidade do FED, que inibe os processos de repasses de inflação diante de choques, sem necessidade de movimentos mais drásticos da taxa de juros.
Com Greenspan o FED passou a ser mais comunicativo e transparente. O sucesso da política monetária depende de seu efeito sobre as taxas longas, que afetam as operações de crédito. De nada adianta mexer nas taxas curtas se as mais longas não respondem. A comunicação e transparência permitem ao banco central afetar os mecanismos de crédito com ações parcimoniosas das taxas curtas, os FED funds que hoje estão em 3,5% a.a.
Mas para que a comunicação funcione, o banco central tem que acertar mais do que errar. A arte e a ciência da previsão, o conhecimento dos mecanismos de transmissão da política monetária (como os juros hão de afetar o crédito?), a capacidade de antecipar mudanças estruturais que alteram o trade-off entre inflação e crescimento da demanda, o grau de acomodação da política monetária aos choques de oferta, todos esses são exemplos dos ingredientes que podem levar ao sucesso ou insucesso das ações do banco central.
O próximo Chairman e o futuro da política monetária
Existe consenso de que Greenspan é um mestre em lidar com todas as nuances da relação entre o banco central, o mercado financeiro e o funcionamento da economia. O que mais se discute sobre sua sucessão é a capacidade do próximo chairman aliar técnica à intuição, como ele tem sido capaz de fazer. Na DÚVIDA entre um candidato com formação e capacidade técnica e outro com muita experiência de mercado e intuição, o primeiro seria a opção menos arriscada. Até porque desde Keynes os economistas vêm sofisticando o seu arsenal teórico e empírico para lidar com a economia. E o sistema do Federal Reserve tem um dos mais respeitados departamentos de pesquisa econômica do mundo a serviço do próximo presidente.
Volcker usou mão de ferro para reduzir a inflação e Greenspan usou a mão do artesão para diminuir a potência dos choques sobre a economia. O artesão não é muito chegado a movimentos padronizados, mas reconhece o papel da técnica. Essa habilidade, por mais que não conste de nenhum manual, deve ter sido em parte absorvida pelos que conviveram com Greenspan nos ÚLTIMOS anos. Por isso, o mais desejável é que o próximo chairman seja um iniciado no processo e no ritual da política monetária dos EUA - vale dizer, um governor (diretor) ou ex-governor do FED. Escolher um outsider, que teria a tarefa de aprender o ofício, seria um risco que os investidores talvez não queiram comprar barato.
Existem dois tipos de outsiders. O primeiro seria um economista com passagem pelo governo mas sem experiência no FED. Dos seis presidentes que o FED teve em sua história, dois tinham esse perfil - Arthur Burns (1970-1978 ) e Alan Greenspan (1987- ). Burns tinha Ph.D. em economia por Columbia e Greenspan graduação e Ph.D por NYU. Burns e Greenspan foram chairmen do Council of Economic Advisers do presidente dos EUA (Eisenhower e Nixon/Ford, respectivamente).
O mais credenciado outsider com esse perfil seria Martin Feldstein, economista de Harvard e ex-presidente do Council of Economic Advisers (CEA) no governo Reagan.
O outro tipo de outsider seria um banqueiro com pouca experiência de governo. Os dois primeiros presidentes do FED tinham esse perfil: Marriner Eccles (1936-1948) não era formado e era presidente do Utah Bank Holding Company; e William McChesney Martin Jr. (1951-1970) tinha graduação em inglês e latin em Yale, era um stockbroker e foi presidente da bolsa de Nova York.
Ainda que não seja citado como candidato a presidente do FED, um excelente nome com esse perfil é Robert Rubin. Ele teria a seu favor a bem-sucedida passagem pela secretaria do Tesouro no governo de Bill Clinton e vasta experiência em Wall Street como senior partner e co-chairman do Goldman, Sachs & Co.
Outra possibilidade é que o próximo chairman seja alguém com passagem prévia pelo FED como foi o caso de Paul Volcker (1979-1987) que tinha formação acadêmica (graduação em economia por Princeton e M.A. em administração pÚblica por Harvard) e experiência no governo e no FED.
O mais desejável, portanto, é a indicação de um dos governors que trabalharam com Greenspan. E aí se destacam três nomes: Ben Bernanke, Donald Kohn e Roger Ferguson.
Ben Bernake tem formação acadêmica, com Ph.D pelo MIT e chefe do departamento de economia da universidade de Princeton de 1996 até 2002, quando assumiu cargo de diretor do FOMC. Em junho deste ano Bernanke deixou o FED para ocupar a presidência do CEA.
Donald Khon é funcionário de carreira do FED. Possui Ph.D em economia pela universidade de Michigan. Iniciou sua carreira em 1970 como economista do FED de Kansas e depois de chefiar diversos departamentos internos, Kohn tornou-se diretor em agosto de 2002.
Roger Ferguson é vice-presidente do FOMC desde 2003. Antes disso foi diretor do FOMC desde 2001. Ferguson tem J.D em direito e Ph.D em economia pela universidade de Harvard, com passagens pelo BIS e pela iniciativa privada como advogado e economista.
Quais sãos os próximos passos do FED?
Recentemente, o FED tem introduzido inovações na maneira de fazer sua política monetária, principalmente no que tange à transparência. Por exemplo, em 2005 o FOMC passou a divulgar as atas de suas reuniões três semanas antes da reunião seguinte. Anteriormente, a ata era divulgada apenas após a reunião seguinte de maneira que não servia para os agentes como um guia dos possíveis passos da política monetária. No ÚLTIMO documento semestral para o Congresso o FED passou a divulgar as projeções de seu staff para a inflação e crescimento do PIB para horizontes de até 2 anos.
Este ano, em suas reuniões, o FOMC tem discutido a possibilidade de introdução do regime de metas de inflação. O objetivo do FED, estabelecido por lei, é a estabilidade de preços e o pleno emprego. Estes objetivos têm a mesma importância e o FOMC trabalha com uma meta de inflação implícita. O regime de metas de inflação sugere uma hierarquização dos objetivos, colocando toda a importância na estabilidade de preços a partir da divulgação explícita de uma meta para a inflação. Este sistema é adotado com sucesso na Nova Zelândia, Canadá, Inglaterra, Suécia, Espanha, Brasil entre outros.
Greenspan é contrário à adoção do sistema de metas. O próximo presidente do FED terá que levar adiante essa discussão. Dos candidatos mais prováveis, Ben Bernake é o mais convicto sobre as vantagens da adoção de metas. Já Donald Kohn argumenta contra a hierarquização dos objetivos. Portanto podemos esperar calorosos debates sobre o tema.
Outra possibilidade seria “o caminho do meio” proposto pelo ex-diretor do FED Laurence Meyer cuja proposta é divulgar uma meta para a inflação sem horizonte de tempo determinado, mantendo-se o sistema atual com dois objetivos. Esta alternativa captaria os principais benefícios do sistema de metas (transparência, ancoragem de expectativas, accountability ) mantendo a flexibilidade do método atual.
Por mais que nas ÚLTIMAS duas décadas tenha melhorado muito a reputação do banco central americano, o fato é que o nome do próximo presidente fará diferença. Afinal, se por um lado é verdade que os investidores estão tomando risco barato porque o mundo está mais estável e resistente a choques, por outro, em janeiro do ano que vem, o novo chairman terá que lidar com as CONSEQÜÊNCIAS da especulação imobiliária, do choque de petróleo e, eventualmente, de uma forte depreciação do dólar. Pensando bem, talvez fosse melhor Greenspan ficar mais um pouquinho...